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Os fluidos corporais de Bolsonaro

"A ideia que “todo mundo uma hora ou outra vai ter contato com o vírus” é claro, uma estratégia necropolitica, mas é também um apelo para a manutenção da sua obsessiva masculinidade. Como um colonizador, o capitão Bolsonaro elege seu exército de inseminadores, supondo que todos são eugenicamente resistentes ao vírus." Texto de Ana Paula Garcia Boscatti.


As partículas de saliva saindo da boca de Bolsonaro. Créditos: Joédson Alves



Fluidos sexuais, catarros, sangue, ossos podem ser descritos como “substâncias corporais”. Janet Carsten[i] entende que essas substâncias estão implicadas no que se entende como parentesco. Fundamentalmente, esses fluidos corporais implicam fluxo e intercâmbio uma vez que sua carga biomolecular pode ser usada para desmembrar o que o parentesco envolve: gerar hereditariedade.

Frente a pandemia do COVID-19, as substâncias corporais passam a ser administradas pelos Estados Nacionais. Cada país gerencia seus fluidos corporais dentro de suas fronteiras necropoliticas e biopolíticas. Com a COVID-19 o corpo, como Preciado[ii] sinaliza, é o grande lócus por se retorna a ideia de fronteira para reestruturar o que se imagina como soberania nacional. Com o COVID-19, para o autor, as políticas de Estado fecharam as fronteiras de seus próprios territórios para as realocarem no nível de cada corpo. O corpo é a grande barreira contra o vírus, onde novas fronteiras se colocam: a casa, como um bunker protegido contra os invasores externos e a máscara, protegendo e redefinindo interditos e espaços sacralizados.

Desta forma, a mão, a boca e a casa são espaços sacralizados e proibidos do acesso e do contato comunal. Os rituais de higiene e purificação se aprofundam permitindo que a gestão da peste crie novas formas de controle do corpo. Mas, a medida que se impõe uma série de novas práticas e autocuidados reguladores de uma nova moral que emerge, Jair Bolsonaro escapa a todas as normativas internacionais, convenciados por organizações de saúde coletiva e pesquisa científica, despreza os interditos físicos e irrompe sua própria narrativa. Ele inverte a narrativa do contágio.

Ao negar a potência de transmissão do vírus ele transforma o seu significado. Os efeitos de poder da gestão de Bolsonaro reinventam a COVID-19 não através da lógica do contágio mas a seu contrário, ele recondiciona o a compreensão do vírus através da lógica da transmissão, como ele mesmo diz: - “é inevitável uma hora ou outra todo mundo vai ter contato com o vírus”. Seus atos simbolicamente mostram a necessidade de disseminar o vírus, nessa medida, ele mesmo é um agente semeador do COVID-19. Essa mudança na perspectiva de olhar em relação ao vírus, sinaliza que os significados partilhados na administração do COVID-19 não é desassociado de raça, gênero, classe e sexualidade, pelo contrário, esses elementos funcionam como dispositivos por onde se subjetivam regulações.

Na sua gestão masculinista de poder, a lógica da disseminação do COVID-19 é a lógica da inseminação, da fecundação. Bolsonaro não encara a transmissão do vírus como contágio, mas como manutenção do corpo nacional. Tanto no sentido eugênico, uma vez que não é novidade que o poder usa as epidemias como laboratórios de engenharia social, de purificação da “raça”, ou seja, de eugenia para reorganizar a utopia da comunidade “nacional”. Historicamente, as epidemias tem como efeito de poder a manutenção do núcleo de reprodução do corpo nacional soberano, através da sua administração biopolítica e necropolitica. Mas além disso, suas fantasias patriarcais colonizadoras conduzem os imaginários a uma reforço constante de um sistema binário de valores (homem x mulher, bem x mal) atravessado por obsessões masculinistas.

Para Bolsonaro, o corpo nacional é um corpo fecundável. No seu modelo biológico e binário de poder para a continuidade do exercicio da sua soberania é necessário tornar o corpo nacional feminino: um útero reprodutivo por onde se perpetua, mesmo que violentamente sua narrativa. Dessa maneira, ele espalha seus fluidos corporais, como na busca insessante pelo desejo de manutenção da sua filiação, assim como toques e conduz sua narrativa através de objetos fálicos como a banana (como a que o humorista deu aos jornalistas para contorná-los sobre o péssimo desempenho econômico). Ele mesmo é o pênis desprotegido que irrompe as fronteiras da reprodução e semeia o extermínio em massa (e não a vida com prenunciam os movimentos e comunidades anti-aborto). Indiferente aos próprios limites materialmente físicos e de geração, Bolsonaro performatiza o pênis jovem e inesperiente que muitas vezes coloca o preservativo errado, ou tira o preservativo antes do orgasmo. Assim como fez com a máscara médica que cobra as áreas da boca e nariz, Bolsonaro personifica o pênis jovem, desprotegido, inseguro e procriativo que busca incessantemente a fecundação, sem a responsabilidade por seus atos.

Portanto, a ideia que “todo mundo uma hora ou outra vai ter contato com o vírus” é claro, uma estratégia necropolitica, mas é também um apelo para a manutenção da sua obsessiva masculinidade. Como um colonizador, o capitão Bolsonaro elege seu exército de inseminadores, supondo que todos são eugenicamente resistentes ao vírus. Eles irrompem o espaço simbólico da cidade vazia, como o desejo de penetração colonial das terras vazias. O espaço vazio da cidade em tempos de isolamento social, tem o seu próprio valor simbólico. A cidade é um espaço de disputa política onde grupos políticos também tentam inscrever seus significados, seja através de pichações ou através de lojas de grife. Anne McClintock[iii], analisou como a expansão imperial do “descobrimento” era rodeadas de fantasias sobre a fecundação das “terras virgens”. Os colonizadores, buscam impor suas bandeiras (literalmente) através de uma reorganização do mundo simbólico em defesa da manutenção do corpo nacional e da branquitude.

Seus agentes colonizadores, as elites nacionais, são os espermatozóides que percorrem vias estreitas e disputam semioticamente a narrativa sobre a “verdade” nacional, produzindo um nova “raça” que busca apagar o “outro”: pobres, pretos,velhos, pessoas com deficiência e/ou doenças crônicas, trabalhadores, favelados, petistas, feministas, etc. O vírus é dentro dessa perspectiva, o responsável por dar a “vida” a esse novo Brasil. O discurso sobre o extermínio em massa é simultaneamente a esperança da gestação de um novo Brasil.

O “histórico de atleta” e o laborário experimental eugênico

Bolsonaro afirmou que “seu histórico de atleta” lhe trouxe alivio em relação a uma possível contaminação com COVID-19. A partir dessa fala, Bolsonaro mostra como a ideia de “melhoramento” do corpo nacional está associada as técnicas de treinamento físico.

No início do século XX, o Brasil era considerado um país condenado. Para as teóricas científicas, sua base mestiça, negra e indígena havia tornado, inviável o crescimento econômico, moral e físico do povo brasileiro (como apontaram autores como Oliveira Vianna, Renato Kehl, Hernani de Irajá, Monteiro Lobato, etc). A imigração européia foi uma das soluções para o branqueamento, pois a ética voltada para o trabalho dos novos imigrantes poderia conduzir para o desenvolvimento econômico, moral e racial. As teorias eugênicas defendiam o branqueamento do Brasil para construir uma vida biológica mais potente.

Teóricos como Renato Kehl[iv] e Hernani de Irajá apostavam em outra coisa além da branquitude para salvar o Brasil da desgraça da sua “natureza”: a ginástica. Essa nova forma de percepção olhava para a gordura, como uma inimiga da “saúde” e a prevenção para o acúmulo de adiposidade era promovida através de exercícios regulares e disciplina. A educação física, que foi aplicada no currículo básico desde a década de 30 e na década de 70, promoveria uma administração coletiva de corpos “sadios”, que além de prevenir doenças através da autogestão, poderia incidir sobre a aparência estética, transformando o corpo belo em capital rentável à estrutura de produção.

Uma disseminação de uma cultura fitness transformaria a cultura nacional em uma Esparta tropical que renegaria os corpos com deficiência, feios, dissidentes, idosos e gordos e apagava as peles pretas do sistema de representação. Mostrei na minha tese de doutorado chamada “A bunda e a “natureza” nacional: a fabricação sexopolítica da brasilidade nos anos 70 e 80”, como nos anos 70 e 80, o poder nacional anunciava a vitória eugênica do Brasil através da imagem da carioca. Ela representava o avanço biológico da espécie nacional: bronzeada (porém branca), pornográfica, moradora da Zona Sul e consumidora. O novo corpo nacional carregava uns simbolos de um país que queria ser visto como vencedor na guerra guerra biológica da eugenia. O corpo esteticamente bonito, regulado por dietas, fármacos, exercícios e técnicas cirúrgicas promovia um novo Brasil que havia apagado a feiuras e abraçado o consumo. O corpo nacional pressupunha saúde, mesmo que essa saúde pudesse ser apenas condicionada a estética. Miriam Goldenberg[v], chama essa busca incessante pela manutenção da beleza, da juventude e da boa forma no Brasil como uma “civilização das formas”.

O “avanço” do corpo nacional flertou com duas principais estratégias: a branquitude e a bioestética. Elas juntas produziram uma ideia sobre qual era “natureza” soberana do corpo nacional. Na gestão da COVID-19, os “biologicamente” fortes que disseminam a utopia da “gripezinha” buscam legitimar seu modelo espartano de sobrevivência. As elites nacionais, reguladas por esse modelo de corpo nacional soberano, projetam nos exercícios físicos associadas às tecnologias cosméticas, a potência da sua “natureza” que pode livrá-los do perigo do contágio.

O gerenciamento do COVID-19 em direção ao extermínio em massa busca de um novo modelo de povo brasileiro. Esqueçam a antropofagia, a tropicália e até a mestiçagem. Os pentencostais e seu sistema de símbolos e mitogias apocalípticas sobre fim do mundo e o arrebatamento, acreditam em um mundo dominado pela fé cristã. O paraíso será apenas destinado aqueles que foram mais tementes ao sistema de crenças das suas Igrejas, que por sua vez, ressoam o mito de um Messias, o salvador de um povo tomado pela corrupção e a imoralidade em suas várias esferas.

A fé nesse novo paraíso se mostra no discurso errático em relação a contaminação: os escolhidos da pátria (banqueiros, grandes empresários, milicianos, empresários da comunicação) e de Deus (líderes religiosos e pagadores de dízimos) são aqueles que esperam fundar o novo Brasil, tornando abjeto e desnecessário todos aqueles que não os identificam. A negação a possibilidade do contágio diz respeito a invenção dessa nova bios, inseminada artificialmente pelas tecnologias de produção de fake news e atravessada por fantasias de masculinistas de produção de hereditariedade. A politica de negação da pandemia é também a execução de um laboratório experimental onde se gesta uma nova nacionalidade: branca, bioestética, neopentecostal e reprodutiva.






[i] Janet Carsten, Substance and Relationality: Blood in Contexts, Annual Review of Anthropology, 2011 40:1, 19-35. [ii] Paul Preciado. Aprendiendo del vírus. In: Sopa de Wuhan. E-book. Editorial ASPO, Buenos Aires, 2020. [iii] Ver Anne McClintock Couro Imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial tradução Plínio Dentizien, (Campinas – SP, Editora UNICAMP, 2010). [iv] André Luís S. Silva. Imperativos da beleza: corpo feminino, cultura fitness e a nova eugenia. Ed. Cedes, Campinas, vol. 32, n. 87, p. 211-222, mai.-ago. 2012 [v] Miriam Goldenberg e Marcelo Silva Ramos. A civilização das formas: o corpo como valor. In: Nú & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca/ Mirian Goldenberg (et. al.) – 2ª edição. (Rio de Janeiro, Record, 2007) p. 19.

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