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  • Foto do escritorLaHibrid

Sangue Ruim: Plasma convalescente e a sangue de pessoas LGBT

Nos próximos dias, o STF pretende derrubar a restrição à doação de sangue por homens gays. Com o assunto vindo a calhar, é notório que ainda há uma grande resistência nesse processo: a dubitalidade das pessoas acerca da doação de sangue da população LGBT pode custar vidas, uma vez que a doação do plasma convalescente pode atuar como possível contentor do novo vírus.



Ainda não eram nove horas da manhã e a pergunta foi lançada através da máscara cirúrgica, com alguma hesitação: “E gays podem doar plasma?”. A fala do médico estagiário - ou residente, como a maioria prefere ser chamada – atravessou a sala, ressoou nas paredes e me causou um momento reflexivo por alguns segundos. O momento era a entrevista para a participação no projeto de plasma convalescente para tratamento do Covid-19.

Eu já sabia a resposta. Mesmo assim, sugeri que ele perguntasse a médica de plantão, responsável pela triagem pré-doação. Ele não seria aceito para doação devido à questões de acesso venoso, mas provavelmente seria recusado na entrevista, uma vez que não performava uma virilidade esperada socialmente.

Quanto a mim, o pouco que me restou de virilidade não seria suficiente para ser aceito em uma doação de sangue. Não sendo tão trágico, seria aceito sim, caso me mantivesse em abstinência sexual por mais de 12 meses. Mas essa abstinência poderia ser comprovada?

E a minha surpresa quando muitas de minhas amigas que trabalham no mesmo hospital que eu, não sabiam que doar sangue e seus componentes ainda era um privilégio heterossexual cisgênero. Apesar de ser um preço alto utilizar o termo privilégio, ter seus hemocomponentes aceitos para doação, é sim, um privilégio, uma vez que é um direito constitucional garantido apenas para um grupo de pessoas sob a justificativa de que estas se engajariam menos em situações de risco a “saúde”.

Fiquei pensativo sobre a situação que o rapaz branco, franzino e disposto a doar seu plasma para ajudar alguém que estivesse em estado grave por causa do Coronavírus me apresentou.

Nunca concordei com a restrição de pessoas LGBT à doação de sangue - uma vez que eu mesmo, como gay, estaria proibido de doar meu sangue, ainda que para um parente em uma emergência, exceto no caso de mentir, omitir e disfarçar minha orientação sexual durante a triagem de doação -, mas a situação de pandemia se coloca como uma situação mais urgente. Afinal, pessoas estão sendo enterradas sem atestado de óbito, doentes estão sem acesso a leitos e respiradores, e pessoas tentando manterem-se sãs no isolamento social, aparecem como pontos muito mais prioritários do que um direito para doar sangue.

No entanto, a pesquisa que citei no começo, utilizando plasma convalescente permite pensar como esta restrição de direito pode ser mais um pequeno tijolinho amarelo na extensa estrada do colapso do sistema de saúde neste período de pandemia. O estudo iniciado no Hospital das Clínicas de São Paulo - que já está em andamento também no Paraná com a Hemepar, no Rio de Janeiro com a Hemorio e em alguns hospitais privados pelo país - utiliza o plasma de pessoas que testaram positivo para o Covid-19 e que já estão curadas em pessoas que estão internadas em estado grave por conta do vírus.

O plasma é composto principalmente por água, proteínas, fatores de coagulação, sais, lipídios, hormônios e vitaminas. Ele é importante no transporte destes componentes e também dos anticorpos, e por isso se torna um importante objeto de pesquisa em um período de pandemia de um vírus que pouco se conhece e que se alastra em uma velocidade assustadora.

O plasma convalescente já foi utilizado em outras epidemias, como a de SARS-CoV (Síndrome Respiratória Aguda Grave), em 2003, do vírus influenza H1N1, em 2009, na epidemia de MERS-CoV (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), em 2012, e em 2014 nos surtos do vírus ebola na região da África Ocidental.

A possibilidade de que os anticorpos contidos no plasma convalescente possam suprimir a presença do vírus no sangue do paciente é a aposta das (os) pesquisadoras (es) em um momento em que nenhum outro tratamento ainda foi encontrado como certeiro para o vírus que continua a matar milhares de pessoas pelo mundo. A máquina capaz de retirar o plasma do doador, conhecida como máquina de aférese, parece um equipamento do futuro e seria facilmente confundida com o B9 de Perdidos no Espaço. Sendo que os primeiros a serem convocados no HC de São Paulo para a doação do plasma foram profissionais da área da saúde, uma vez que muitos foram os primeiros a serem testados logo no início da pandemia no Brasil.

Mesmo com a experiência da contaminação, com a presença do vírus percorrendo seus corpos e que os afastou de suas funções, me surpreendi ao ver que a maioria atendeu prontamente a convocação para a doação e encontrou um espaço em seu dia para comparecer a entrevista para doação.

Não se engane. O medo estava ali. Uma das médicas que conversei disse que tinha medo de que a recontaminação pelo vírus fosse possível, mesmo assim ela estava ali para tentar ajudar. Um técnico de uma UBS também estava com medo de se recontaminar e ficar mais alguns dias sem poder abraçar seu filho, mas ele queria doar seu plasma, se isso fosse salvar alguém.

O medo estava ali. Em mim, conversando com aquelas pessoas, no prédio que está servindo exclusivamente para acolher pessoas em estado grave do Covid-19. Naquelas vozes que relatavam suas experiências com o vírus e com as pessoas vítimas dele. Mas o medo não é aferível e alguma coisa um pouco mais potente estava presente. Algo que nos coloca ali neste momento de incerteza, receio e ansiedade. Algo que costumo pensar como um impulso vital, que nos impele a tentar fazer algo contra o invisível.

Ninguém sabe se a projeto trará resultados positivos no tratamento do Covid-19, mas um estudo na China[1] demonstrou melhora dos sintomas clínicos nos 10 pacientes que receberam o plasma convalescente. Um sinal de esperança, de vida, em um período de morte e incerteza. E imaginar que pessoas LGBT ainda são proibidas de doar sangue, ou seja, de ajudar a salvar vidas, é algo além de incoerente, discriminatório.

Médicos da área da saúde, inclusive alguns próximos a mim, são a favor da restrição na doação de sangue para “gays” – que também se estende para pessoas trans e travestis heterossexuais -, sob a justificativa de que este grupo apresenta maior prevalência na contaminação do vírus HIV. No entanto, estes profissionais parecem ignorar que a testagem para IST’s[2] em pessoas heterossexuais é infinitamente menor em relação a pessoas LGBT. Em um período em que o termo subnotificação ganha popularidade, este é um exemplo de dados subnotificados. Você conhece algum amigo hétero que já fez teste pra HIV?

Outra informação também ignorada constantemente é que em todas as bolsas coletadas, seja de uma pessoa dita heterossexual ou não, são realizados testes, para identificar possíveis contaminações e alterações. Se existe a obrigatoriedade de que todas as bolsas de hemocomponentes sejam testadas, inclusive para o HIV - que já sabemos há décadas de que não é uma preocupação apenas de “grupos de risco” -, por que algumas pessoas ainda são proibidas de doar?

Nos próximos dias o Supremo Tribunal Federal votará sobre a constitucionalidade de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária que limitam a doação de sangue por pessoas LGBT. A votação se encerra no dia 8 de maio e poderá mudar os rumos da doação de sangue e de projetos como este de plasma convalescente contra o Covid-19. Neste momento de incertezas políticas, ameaças constante a democracia, descrédito das pesquisas acadêmicas brasileiras e desmonte da saúde pública, a mudança nestas normas poderão ser um feixe de luz e meio a tantas trevas e retrocessos.

[1] Treatment with convalescent plasma for COVID‐19 patients in Wuhan, China (2020). [2] Infecções Sexualmente Transmissíveis

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